Sair do Minho para chegar até ao primeiro jorro do Bidosoa; descer Navarra à procura de Rioja; palmilhar Sória e Burgos para ir dar a Palência e ao reino de Leão; entrar em Ávila pela porta salmantina de Béjar; continuar por Segóvia para procurar o caminho de Alcarria; fazer Madrid e a Mancha de Toledo, de Cuenca, de Albacete e de Ciudad Real; aproximar-se da raia portuguesa pela Estremadura; atravessar as quatro ou cinco andalusias; espreitar Múrcia; tomar, de sul a norte, o reino mouro de Valência; percorrer o louro e misterioso Aragão; medir o principado da Catalunha desde o vale de Áran ao pla tortosino, e embarcar em Salou, como o rei Dom Jaime, para vir à mediterrânica Maiorca escrever – com os olhos postos, aquilo a que se chama pôr, nas longínquas Canária Atlânticas – seria, não há que duvidar, uma bela experiência.
Camilo José Cela, Vagabundo ao Serviço de Espanha

Não é possível definir com precisão a origem temporal do projecto que, neste Livro Ibérico, tento resumir com um lote de imagens. Em 1994, aquando da primeira fotografia (Estação de Stª Apolónia, Lisboa, 1994), a minha ignorância em relação a Espanha era evidente e a Europa ainda uma miragem. Como o viajante anónimo no banco da estação, estava pronto para dar as costas ao Atlântico, contrariando a predisposição ancestral de um povo que sempre lidou mal com a sua situação geográfica. A fotografia da estação é um símbolo e uma âncora para o Livro Ibérico.

Viajei de oeste para este, atravessando a península até à Catalunha. Mais tarde, como o homem à beira-mar (Barcelona, 2000), movi-me, com o Mediterrâneo à direita, até às montanhas que separam Espanha de França. Vi o mar que banha a costa sul de Espanha – e que se afastou quase irremediavelmente da cultura portuguesa –, pela primeira vez, em 1996. Mais tarde, após franquear uma das portas de saída do continente e passagem sinistra para outro mundo (Algeciras, 2002), atravessei-o no lugar onde se encolhe para logo recuperar a desmensura transformado em oceano.

Durante esses anos, cortei a península pelo maciço central, sob o calor inclemente do Verão ibérico ou sujeito à invernia da meseta; contemplei, tantas vezes, as paisagens agrestes de Castela, Estremadura e Aragão; espreitei o norte galego e o sul andaluz, onde se vive do mar e da terra numa harmonia invejável; subi os Pirenéus, verdes em ocasiões, brancos noutras; redescobri o Algarve e a Beira Alta da minha infância; percorri a região de Trás-os-Montes, desde sempre presente nas minhas tradições familiares; mantive a relação estável e duradoura com as planícies alentejanas; visitei, em poucos anos e com uma avidez inconsolável, Salamanca, Segóvia, Ávila, Mérida e Toledo; percorri as ruas de Madrid e Barcelona; reconciliei-me com o Atlântico em Vigo e em Cádis. Percebi que os rios Minho e Guadiana são fronteiras débeis e que o Tejo, no estuário, representa uma barreira maior entre uma margem sul suburbana e uma cidade que aspira, sem grande sucesso, a um cosmopolitismo europeu.

Camilo José Cela conclui, na obra referida em epígrafe, que a experiência não é possível a um único vagabundo. Quase todo o viajante é, como aquele que Cela descreve (ele próprio, note-se): «homem de boa intenção, mas também de dias e bolsa contados». Cito-o para reforçar a ideia de que o «Livro Ibérico» não é um retrato documental da península, e que a sua incompletude, num sentido quase godeliano, é indissociável da viagem que iniciei ao preparar este trabalho. Se a um documento se assemelha, talvez seja porque representa as experiências descritas no parágrafo anterior, umas vezes de forma mais explícita, outras – e escrevo isto com consciência da possível impertinência de algumas imagens – com um carácter mais obscuro e cifrado. O Livro Ibérico é uma reflexão sobre a troca de uma identidade, ténue e duvidosa, por outra, mais forte, mais abrangente, mais realista.

 

Carlos M. Fernandes